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As práticas do Budismo Tibetano


Introdução

Quando somos apresentados ao Budismo Tibetano, é como se chegássemos a uma casa com várias portas da frente. Ficamos sem saber por que porta entrar, e também não sabemos o que dizer ou fazer depois que entramos.


O budismo tibetano, com suas muitas práticas, templos coloridos e variadas deidades meditativas, pode, a princípio, parecer confuso para o novo estudante. Mas quando entendemos como as diferentes deidades e práticas se encaixam no conjunto, esse quadro não fica mais tão confuso.


Parte de nossa dificuldade em abordar a tradição do Budismo Tibetano é cultural. No antigo Tibet, os estudantes nasciam na tradição budista, e suas práticas eram para eles tão familiares quanto o Lama (professor) que morava logo adiante ou o Gompa (templo) no vale do próximo rio. No ocidente, entretanto, o budismo ainda é novo, e as etapas da prática – forma dos estudantes evoluírem de um nível para outro – não é óbvia nem parece lógica em sua aparência externa. Não crescemos com o budismo, de forma que os Budas e Bodshisatvas e suas práticas nos parecem estranhos e exóticos, até mesmo inacessíveis.


No entanto, tendo uma orientação, é fácil reconhecer os padrões da tradição do Budismo Tibetano e ver como as práticas se encadeiam de uma forma lógica e progressiva. Este entendimento nos dará a confiança para prosseguirmos com a nossa prática e progredirmos no caminho, da mesma forma que o fizeram os praticantes do passado.


Esta é a finalidade deste texto; introduzir as várias práticas do Budismo Tibetano e mostrar como elas evoluem de um nível para o próximo. Não é, de forma alguma, uma explicação completa; muitos aspectos do Budismo Tibetano não são cobertos por ela. Este guia vai, entretanto, dar uma idéia geral dos tipos básicos de prática, de forma que o estudante iniciante possa melhorar seu entendimento e sua confiança na tradição tibetana.

O fundamento do trabalho

Todos os estudantes começam da mesma forma: entender o que é a iluminação e qual é a importância de atingir a iluminação espiritual. No período em que viveu, há 2.500 anos atrás, o Buda histórico, chamado Shakyamuni, ensinou que a mente era a base de toda a experiência – que tudo o que experimentamos, felicidade e tristeza, prazer e dor – é percebido, classificado e experimentado pela mente.


Ele também ensinou que nossas mentes têm uma natureza básica de sanidade iluminada e bondade – a mente é basicamente clara e sem limites – mas que é difícil para a pessoa comum experimentar esta natureza básica por causa das emoções aflitivas ou kleshas.


As emoções aflitivas, assim como todos os pensamentos, surgem continuamente na mente e criam uma espécie de neblina emocional que nos impede de ver nossa natureza básica. Por não entendermos a natureza passageira, temporária destes pensamentos e emoções, e não entendermos que eles são meras manifestações da natureza básica mais profunda da mente, tendemos a nos apegar a estes pensamentos e emoções, usando-os para construir uma auto-identidade a que chamamos de “eu”.


Por ficarmos preocupados com esse “eu” e seus pensamentos e emoções superficiais, é difícil para nós perceber nossa natureza básica iluminada. Tendemos então a pensar que as fontes da felicidade e bem estar pessoal estão fora de nós, e passamos a maior parte de nosso tempo buscando a felicidade temporária, física e mental, nestas fontes externas.


No entanto, se reconhecêssemos pensamentos e emoções pelo que eles realmente são – meras ondas na superfície de uma mente basicamente feliz e sã – poderíamos desobstruir o caminho para um tipo de vida diferente, uma vida em que experimentamos momento a momento a natureza inata iluminada da mente. A isso o Buda chamou de iluminação.

As práticas do Budismo nos levam, então, passo a passo, da confusão para a iluminação, um processo que leva muitos anos e requer muito esforço sincero para ser realizado. No entanto, mesmo que a iluminação pareça estar distante, ela não está – o próprio Buda, sendo ele mesmo um simples ser humano, a realizou, e ensinou que todos a podem realizar também. Isso se dá porque todos têm uma mente – a que o Buda chamou de o fundamento do trabalho pela iluminação.


A escolha


Todas as pessoas têm, então, uma escolha a fazer: decidirem se vão buscar a iluminação e a felicidade duradoura que vêm juntamente com ela, ou se permanecerão no mundo da confusão e emoções conflitantes a que o Buda chamou de samsara. Para fazer esta escolha, as pessoas têm que começar a entender os benefícios da iluminação e as desvantagens de permanecer no mundo samsárico.


O maior benefício imediato da iluminação, conforme o Buda ensinou, é a eliminação do sofrimento. Este sofrimento é eliminado através da eliminação de suas causas: as ações egocêntricas. Em nosso estado mental confuso habitual somos muito egoístas – fazemos tudo para conseguir nossa felicidade e conforto, mesmo que isso implique em prejuízo para os outros. As ações que fazemos contra os outros - mesmo as menos importantes, como mentir para outras pessoas ou desprezar suas tentativas de nos oferecer carinho e afeição – podem, na realidade, repercutirem em nós e nos causarem dor. O Buda chamou a isso de lei do karma.


Quando ferimos os outros, ferimos a nós mesmos – tornamos nosso mundo pessoal mais brutal e corrompido – da mesma forma que o Reverendo Martin Luther King ensinou que pensamentos e ações racistas escravizavam os brancos, tanto quanto os negros. Algumas pessoas costumam dizer que o karma é uma espécie de justiça cósmica, uma espécie de “tudo que vai, volta”, mas ele se resume a isso: criamos nosso próprio mundo com nossos pensamentos e ações. Quanto mais brutais e egoístas forem nossas ações, tanto mais brutal e egoísta se torna nosso mundo, e os seus sofrimentos.


Tendo o Buda ensinado a reencarnação (a continuidade da experiência, vida após vida) como uma extensão da lei do karma, é fácil perceber que os frutos desta “criação de nosso próprio mundo” podem acontecer a qualquer tempo, na vida atual ou em uma vida futura. Desta forma, uma pessoa que foi brutal com os outros por muitas vidas, criou um mundo de brutalidade e sofrimento que vai durar por um tempo muito longo – talvez por várias vidas – até que os efeitos negativos desta brutalidade e egoísmo sejam contrabalançados por ações positivas, altruístas.


Ações altruístas criam um mundo de paz e suavidade em torno de nós – pessoas positivas têm nelas um tipo particular de energia agradável e feliz e tendem a fazer os outros também se sentirem relaxados. Este é o motivo pelo qual o Buda deu os ensinamentos sobre o karma. Para nos mostrar que aquilo que fazemos é muito importante para nossa felicidade futura e nos fazer cuidar de nossas vidas futuras.


Se nos preocuparmos com nossas vidas futuras e percebermos a verdade do karma, vamos querer praticar qualquer disciplina que seja capaz de reduzir nosso egoísmo, também chamado de apego ao ego, e aumentar nosso altruísmo. Através do incremento de nosso altruísmo, enfraquecemos nossa prisão às emoções aflitivas, e isso nos permite “ver” e experimentar a natureza basicamente sã de nossas mentes. Isso conduz a uma felicidade duradoura e à iluminação.


Um ser iluminado, conforme o Buda ensinou, não tem egoísmo, e pode assim ajudar de maneira perfeita às outras pessoas e ser uma fonte de inspiração para outros que buscam a iluminação. É por este motivo que as imagens do Buda são tão destacadas nos santuários budistas; para servirem de inspiração para buscarmos a perfeição oculta (chamada de natureza de Buda) que todos carregamos em nós mesmos.


Como funcionam as práticas


AS práticas do Budismo Tibetano começam com este fundamento de trabalho e se sucedem de uma maneira gradual. As primeiras práticas acalmam a mente, de maneira que ela possa vislumbrar sua própria natureza de Buda, sendo então seguidas por uma série de outras práticas que erradicam o apego ao ego e substituem os hábitos egoístas por hábitos altruístas.


Finalmente, quando as ações altruístas houverem eliminado mais sofrimentos e negatividades da mente, o praticante estará pronto para empreender práticas mais profundas, que aceleram seu processo de realização e possibilitam que alcance a completa iluminação.


É importante que estas práticas sejam seguidas na ordem correta. Se as pessoas decidirem por si mesmas que não precisam de práticas para acalmar a mente, como a meditação de tranquilidade e passarem imediatamente para práticas mais profundas sem a devida preparação, correm o risco de sofrer danos físicos e mentais e de criarem um ego reforçado, em vez de atingirem a budeidade.


O amigo espiritual


Por existirem tantas práticas e tantas maneiras de aplicá-las, é importante contar com um amigo espiritual – um professor ou lama – para nos guiar no caminho. O amigo espiritual, que já atravessou a caminho e conhece seus perigos ocultos, pode nos conduzir com segurança através das práticas e nos dar conselhos que nos ajudarão no processo de autotransformação.


Buscar e aceitar os conselhos de um amigo espiritual qualificado é, na verdade, um passo importante no caminho. Se insistirmos teimosamente que só nós podemos saber o que é o melhor para nós, isso será uma forma de egocentrismo e orgulho que pode se tornar um forte obstáculo para nosso desenvolvimento espiritual. Precisamos, então, encontrar um amigo espiritual que seja adequado a nós, que conheça nossas mentes e que tenha capacidade de altruísmo para que possa nos guiar da forma correta.


Ao avaliar um amigo espiritual, devemos nos fazer algumas perguntas. Como é essa pessoa? Suas ações estão de acordo com seus ensinamentos? Ele parece estar seguindo um caminho de altruísmo ou um caminho de apego ao ego? Depois de fazer estas perguntas e de avaliar cuidadosamente o professor, poderemos então decidir se aceitaremos os ensinamentos deste professor.


Professores em quem temos grande confiança podem ser chamados de nossos gurus, significando que ocupam um lugar especial em nossas vidas. O professor que nos dá as instruções mais importantes para desenvolver nossas mentes é conhecido como nosso “tsawai lama” ou guru raiz. Essa pessoa tem um papel fundamental em nosso desenvolvimento espiritual.


Shinê (meditação da tranquilidade)


Uma das primeiras práticas do Budismo Tibetano é Shinê (palavra tibetana, Shamata em sânscrito), a meditação de tranqüilidade. No shinê, sentamos calma e confortavelmente e repousamos nossa consciência, seja na respiração ou em algum outro objeto externo, tal como uma flor ou uma estátua do Buda. Ao assentarmos nossa consciência e acalmarmos nossas mentes, conseguimos ver que os pensamentos e emoções aparecem e desaparecem na mente tão facilmente como as nuvens se formam e dissipam no céu.


Isso nos ajuda a entender que nosso auto-conceito não é uma entidade sólida, imutável, e que nossas mentes realmente são muito maleáveis e mutáveis. Este entendimento e a gradual estabilidade mental que vem da prática regular do shinê podem nos ajudar a trabalhar com todas as outras práticas do Budismo Tibetano.


É por este motivo que os lamas chamam o shinê de fundação para todas as práticas. Sem desenvolver alguma estabilidade mental, será impossível para nós lidar com o apego ao ego e com as emoções aflitivas. Veremos cada pensamento e emoção como algo sólido e “real”, o que nos manterá presos a uma rede de esperanças e medos – desejando certos resultado e temendo outros. Não seremos capazes de relaxar e lidar calmamente com nossas vidas e nossas experiências – estaremos sempre envolvidos com alguma espécie de luta.


O shinê nos mostra que não precisamos lutar para manter a consciência, e que a própria consciência pode ser uma ferramenta poderosa para a transformação espiritual. O objetivo último do shinê é uma sensação de habitar em paz, na qual a mente não é perturbada por (mas não despida de) pensamentos e emoções. É neste estado que se pode conseguir um vislumbre da verdadeira natureza da mente e dos fenômenos – uma experiência chamada de Lhaktong em tibetano, Vipassana em sânscrito, ou insight (percepção).


Refúgio


O primeiro passo importante para um praticante no caminho do Budismo Tibetano é a tomada de refúgio. Qualquer um, seja ou não budista, pode meditar e fazer as práticas de consciência, mas para prosseguir no caminho e realizar as outras práticas da tradição tibetana é necessário uma espécie de compromisso.


Dessa forma, um budista iniciante toma refúgio indo à presença e um lama e afirmando publicamente sua confiança no Buda, nos ensinamentos do Buda (chamados de Dharma) e na comunidade de praticantes espirituais (chamados de Sangha). O praticante obtém, com isso, diversas coisas: o princípio da confiança e fé, e os objetos de refúgio (o Buda, Dharma e Sangha), que podem funcionar como fontes de inspiração e proteção.


Como podem as fontes de refúgio nos proteger? Quando somos atirados de um lado e para o outro por emoções conflituosas, podemos nos sentir solitários e indefesos, mas se tivermos refúgio no Buda, em seus ensinamentos e em sua comunidade de praticantes, entenderemos que não estamos sozinhos e que existem métodos de lidar com as coisas que nos fazem nos sentir sós e indefesos.


É aqui que as preces podem ser valiosas para nós. Quando nos sentimos perturbados ou desorientados, podemos rezar para o Buda buscando força e inspiração. O único desejo do Buda era o de que todos os seres se tornassem iluminados, e dedicou sua vida para realizar esta meta. Esse desejo, em si mesmo, quer dizer que ele está constantemente conosco, e que a força de seu exemplo está sempre disponível para nós. Se sabemos disso, nossas preces serão bem sucedidas e nossa confiança será reforçada.


Ações-preceitos construtivos e votos


Quando tivermos nos dedicado ao caminho budista através do refúgio, é importante que redirecionemos nossas energias a praticar atividades construtivas. Por entendermos o karma, e sabermos que o egoísmo e as ações egoístas são causas do sofrimento e confusão, tentamos nos dedicar a atividades que diminuam nosso egocentrismo e aumentem nosso altruísmo. Os budistas chamam estas ações de ações virtuosas, porque anulam o apego ao ego.


O Buda listou atividades virtuosas e não-virtuosas para nos orientar e nos ajudar a seguir uma vida altruísta. Ele ensinou que matar, mentir, roubar, ter má conduta sexual, embriaguez, falar da vida alheia, caluniar, cobiçar, ter ressentimento e visões não espirituais, conduzem a mais auto-centramento e sofrimento. Ensinou também que proteger a vida, praticar generosidade, viver eticamente, falar a verdade, pacificar as desavenças, falar com gentileza, discutir as coisas de maneira construtiva, ter alegria pela boa fortuna dos outros, pensar em beneficiar os outros e não atacar suas crenças, geram mais paz e felicidade, não apenas para nós próprios, mas também para os outros.


Apesar de não ser uma imposição, alguns budistas preferem formalizar seu compromisso com as atividades construtivas através dos votos de leigo. Tomando estes preceitos, nos comprometemos a não matar, roubar, mentir, tomar substâncias intoxicantes ou praticar má conduta sexual. Através deste compromisso formal, cortamos as distrações externas que contribuem para nossas violentas oscilações emocionais e nosso apego egocêntrico e aumentamos nossa sensação de estabilidade e força interior.


Bodichita e o Voto de Bodhisatva


Enquanto praticamos shamata e atividades construtivas, descobriremos que nossas mentes começam a mudar gradualmente. Ficamos menos preocupados com nós mesmos e nossas posses pessoais e “territórios” se tornam mais abertos para os outros. Começamos a ver que os outros seres são exatamente como nós em seu desejo de felicidade, mas são bloqueados por suas emoções conflitantes e egoísmo, tal com nós mesmo fomos. Começamos a ver as razões para seus sofrimentos, e começamos a nos interessar mais por ajudá-los a atingir a iluminação. Na tradição tibetana, esse redirecionamento de interesses e energias é formalizado em uma prática chamada Bodichita.


Bodichita é a palavra em sânscrito que significa “mente do despertar”, e é definida como sendo tanto o desejo de atingir a iluminação pelo bem dos outros quanto a atividade que leva a esta iluminação. Ao conseguirmos mais experiência através de nossa prática, vemos que, enquanto nossa antiga motivação de atingir a iluminação apenas para nosso próprio benefício era útil por nos levar a praticar, eventualmente precisaremos alargar nossos horizontes e abandonar os últimos vestígios de egoísmo em nossa motivação para atingir a iluminação.


O auge deste desejo de nos livrarmos do egoísmo é demonstrado ao tomarmos o Voto de Bodhisatva, pelo qual nos comprometemos a buscar a iluminação para o benefício de todos os seres. Isso quer dizer que reconhecemos a importância dos outros para nosso caminho e que sabemos que nosso trabalho de auto-aperfeiçoamento inclui nosso relacionamento com os outros.


Geramos a bodichita através da recitação das preces de aspiração (reforçando o aspecto de “aspiração” de nossa prática) e através do combate ao apego ao ego pela prática de bondade amorosa e compaixão e ainda pela prática das Seis Perfeições: Generosidade, Paciência, Ética, Diligência, Meditação e Sabedoria (completando o aspecto de “atividade” da bodichita). Enquanto a realização da bodichita definitiva, o completo entendimento da natureza ilimitada da mente, é algo difícil de ser praticado e compreendido, a bodichita relativa – a prática da compaixão – é fácil de entender e praticar.


Através do desenvolvimento da compaixão – primeiro por nós mesmos, e depois pelos outros – quebramos as barreiras dos preconceitos gerados pelo ego, o que torna mais fácil aceitar a nós e aos outros, e trabalhar para o benefício dos seres. Através destas práticas de bodichita, nos tornamos Bodhisatvas – palavra que é traduzida como “o despertar começa”.


Assumimos o compromisso de atingir a iluminação e damos os passos adequados para realizar esta meta, da mesma forma que os antigos buscadores espirituais, que determinaram seus objetivos e depois perseveraram para atingi-los. Desta forma, nosso compromisso com o caminho da estabilidade mental e emocional se torna mais profundo e as recompensas atingidas se tornam mais ricas.


As práticas preliminares: Ngondro


Depois desta etapa de nos dedicarmos ao caminho do bodhistava, podemos então praticar os métodos mais profundos da meditação Vajrayana (ou caminho do diamante) e podemos mais rapidamente realizar nossas próprias naturezas iluminadas. No Vajrayana, usamos visualizações e mantras para incrementar nossa apreciação (e experiência) de nossa natureza de Buda.


Através das práticas do Vajrayana, nos imaginamos como sendo budas totalmente iluminados ou bodhisatvas e imaginamos nosso mundo como sendo um paraíso iluminado – essencialmente nos relacionando com nós mesmos do modo como realmente somos, em vez do modo como nos apresentamos neste momento.


No entanto, antes de empreendermos este caminho profundo e complexo, precisamos nos certificar de que nossa motivação (e nossa prática) é pura e altruísta, e que nosso comprometimento com o caminho é completo. Para realizar isso, o próximo passo na tradição tibetana é o Ngondro, ou práticas preliminares.


Estas consistem de duas partes: preliminares comuns e preliminares extraordinárias. Preliminares comuns são meditações contemplativas sobre a preciosidade da existência humana, a impermanência de toda a existência, a verdade do karma e a insatisfatoriedade da vida samsárica, confusa. Quando estas contemplações tiverem sido feitas de maneira satisfatória, a mente da pessoa estará voltada firmemente para o Dharma, e ela estará pronta para começar com os fundamentos extraordinários.


As preliminares extraordinárias consistem de práticas litúrgicas em que a pessoa reafirma seu voto de refúgio e intenção, recita mantras de purificação, se oferece mentalmente e a todos os tesouros do mundo para o mestres da linhagem e para os seres iluminados, e afirma suas conexões com a linhagem através do relacionamento com seu professor pessoal. Cada uma dessas práticas é repetida de maneira ritual 111.111 vezes, um número repetições que se diz ser capaz de implantar firmemente a ideia no ser espiritual de uma pessoa.


Depois de completar o ngondro, algumas práticas podem ser indicadas, dependendo do estudante. Apesar de existirem muitas práticas, as principais que são ensinadas aos estudantes no ocidente são práticas Vajrayana chamadas yogas de deidade e Mahamudra.


Yogas de deidade: práticas de Yidam


Mesmo depois de praticar shamata, bodichita e as preliminares, ainda continuamos sujeitos à confusão e emoções conflituosas. Para ajudar a eliminar rapidamente estas emoções conflituosas, os mestres do passado nos ensinaram as transmissões de sadhanas (liturgias) dos vários Budas e Bodhisatvas da tradição tibetana.


Através da prática estes rituais, podemos apressar nosso entendimento da natureza básica da mente (que, como explicamos antes, é ilimitada, clara e desobstruída). Fazemos isso através da visualização de um ser perfeitamente iluminado e de nos recriarmos mentalmente à imagem deste ser iluminado. Ao fazermos esta prática, reconhecemos que nossa forma corporal é destituída de existência inerente (como o corpo da deidade), que nossa fala é pura comunicação dhármica (como os mantras sagrados ditos pela deidade) e que nossas mentes são a vasta extensão de consciência aberta sem a mácula de emoções conflituosas (como a mente da deidade).


Estas práticas são chamadas de Vajrayana ou Tantrayana por usarem o princípio do tantra, que quer dizer fio (de costura) ou “conexão”, referindo-se ao fio de despertar que corre através de todas as nossas experiências. Pelo reconhecimento de nossa unidade com o ser iluminado de nossa meditação, descobrimos uma conexão entre todas as coisas – acontecimentos bons e ruins, todos nossos pensamentos, emoções e experiências – e a iluminação. Vemos-nos como sendo sagrados, o nosso mundo como um lugar sagrado cheio de manifestações de iluminação e os nossos pensamentos como o jogo da consciência iluminada. Dessa forma, nossa prática de meditação pode prosseguir continuamente, até mesmo através das atividades mundanas de nossas vidas cotidianas, e podemos atingir mais rapidamente a iluminação.


Os Budas e bodhisatvas (deidades chamadas de yidams em tibetano) são usados nestas práticas tântricas como foco de meditação em que reconhecemos a verdadeira natureza iluminada de nossas mentes. Yidams são considerados emanações da mente iluminada, e alguns são referidos a pessoas que viveram antes ou depois do tempo do Buda. Externamente, eles têm muitas aparências, e suas próprias formas simbolizam suas atividades iluminadas. Existem Yidams pacíficos (tais com Tchenrezig, o bodisatva da compaixão), de aparência agradável, que simbolizam os aspectos calmos e claros de nossas mentes interiores, e existem deidades iradas que simbolizam os aspectos mais ativos de nossas mentes.


Para praticar corretamente estas meditações, são necessárias preparações. Entre estas preparações estão a Iniciação (chamada Wang em tibetano), na qual um professor abençoa ritualmente e apresenta o estudante à deidade; a Transmissão Pela Leitura (chamada Lung), em que o texto da sadhana é lido ritualmente para o estudante como uma autorização para a prática; e a Instrução Prática (chamada Tri), em que os estágios de Desenvolvimento (visualização) e Completude (meditação) da prática são explicados detalhadamente. Sem estas três etapas é difícil praticar completamente uma deidade particular. Alguns estudantes do Dharma, depois de finalizar o ngondro, recebem um yidam para o resto da vida; outros recebem várias práticas de yidam para fazer.


Mahamudra


Em sânscrito, Mahamudra significa “grande símbolo”, ou “grande selo”. Em tibetano, a palavra é “chak ya chenpo”. Ela se refere tanto à natureza básica ilimitada, clara e desobstruída da mente quanto aos métodos usados para atingir a realização desta mente. Mahamudra é a principal prática meditativa da tradição Kagyu do Budismo Tibetano, e foi passada de professor para aluno em uma linhagem ininterrupta por mais de mil anos.


Estas práticas só são passadas quando um professor está certo de que o aluno está pronto e preparado para praticá-las. Os ensinamentos são normalmente dados depois que o estudante completa o ngondro, e podem ou não serem dadas a eles ao mesmo tempo instruções sobre meditações de yidam.


O Caminho Monástico; o Retiro de Três Anos


Enquanto a maior parte dos praticantes do Budismo Tibetano no ocidente continua vivendo com suas famílias, estão se desenvolvendo comunidades monásticas de monges e monjas celibatários. Nestes ambientes, praticantes que querem devotar todas suas vidas à prática têm a possibilidade de desenvolver suas práticas com uma dedicação extraordinária.


Outro ambiente de prática de que estudantes ocidentais podem participar é o Retiro de Três Anos, onde os alunos deixam suas casas e famílias por três anos e três fases da lua e praticam intensamente, seguindo um padrão definido de práticas Vajrayana progressivas. O retiro é elaborado para dar aos estudantes um completo conjunto de ferramentas dhármicas para realização da iluminação em uma vida. Isso também permite que alguns deles se tornem lamas e ensinem para outros.


Sumário


Esta discussão sobre as práticas do Budismo Tibetano enfoca a tradição Kagyu, uma das quatro linhagens do Budismo Tibetano. É apresentada como uma visão geral da progressão dos ensinamentos, para mostrar que as práticas da tradição tibetana se encadeiam em uma sequência lógica que pode ser seguida por todos.


O perigo de apresentar este tipo de visão geral, no entanto, é que após ter lido sobre as práticas mais avançadas do Budismo, estudantes possam querer pular as fases anteriores, pensando equivocadamente que elas são “só para principiantes”. Na realidade, as fases iniciais são cruciais para realizar as que vêm depois. Ceder à tentação de pular fases e tentar fazer outras práticas antes de haver terminado as práticas correntes só pode alimentar as chamas das emoções conflitantes da impaciência e orgulho, nos tornando mais confusos e menos capazes de praticar com eficiência.


O melhor método para seguir estas práticas é encontrar um centro de Dharma e um professor ou lama qualificado, e começar a aprender os métodos corretos de estudo e prática. Depois de estudar cuidadosamente os métodos e fazer perguntas para esclarecer as dúvidas remanescentes, os estudantes devem praticar diligentemente até atingir o entendimento.


A preciosidade da existência humana não deve ser esquecida, logo a morte vai nos alcançar e não poderemos mais praticar, sendo levados por nossas acumulações kármicas a uma vida futura que pode não ser tão favorável quanto a que desfrutamos agora. O fato de termos encontrado os ensinamentos do Buda indica que somos muito, muito afortunados por ter o que a tradição tibetana chama de preciosa existência humana; tudo o que temos a fazer agora é decidir o melhor uso que podemos dar a ela.


Quer saibamos disso ou não, estamos todos em algum tipo de caminho espiritual; procuramos a felicidade, queremos evitar o sofrimento e temos as sementes da compaixão por nós mesmos e pelos outros. Cabe então a nós partir do ponto em que estamos e decidir se queremos prosseguir para a iluminação ou regredir para a confusão. Como o Buda disse, somos nós que podemos nos salvar e precisamos trabalhar com diligência pela nossa salvação.

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